Apenas por pessoas de alma já formada

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Imprevisto

Um show. Lotado. Não tinha noção da quantidade de pessoas que gostavam daquela medíocre (ao menos para mim) banda. Um empurra-empurra. Eu me perdi de meus amigos fácil. Era muita gente e eu não consegui acompanhar os passos de meus colegas. Fui levada por um mar de gente e não tinha a menor ideia do que fazer para reencontrá-los. O celular funcionava, mas não tinha como ouvir nada. Não adiantaria.


- Vanessa? – Alguém chamou (GRITOU) meu nome. Quem seria?
- Você está perdida? – Ele me perguntou (GRITOU) preocupado demais para um desconhecido. Como ele sabia meu nome? Eu não sabia com quem falava, então atordoada perguntei (GRITEI). – Desculpa. Eu te conheço?

Eu tinha certeza que não o conhecia. Mas era tanta gente! Tanto tumulto! Tanta confusão! Será que eu o conhecia?

- Eu sou amigo do Marcelo. Nós nos conhecemos no bota-fora dele. Lembra? – Eu não lembrei.
- Você está sozinha?
- Eu me perdi de meus amigos. – Eu respondi sua pergunta, olhando ao meu redor. Abismada com a aglomeração ali formada. Eu ainda não acreditava na quantidade de pessoas ali presentes. – De onde toda essa gente saiu?? – Ele riu de minha indignação e não disse nada além. Apenas se aproximou de mim, próximo demais para alguém de quem eu nem sequer lembrava, e pegou minha mão, puxando-me pela multidão.
- Para onde você está me levando?

Ele não conseguiu ouvir minha pergunta. Foi, então, que eu lembrei. Entre a pergunta não ouvida e a resposta não dada, eu lembrei quem era aquele que segurava minha mão, me arrastando pela multidão. Estava incoerente demais no bota-fora do Marcelo para lembrar, mas a lembrança me veio como um insight. Ele foi meu salvador. Sim, aquele que me levou para casa, quando todos estavam bêbados demais para dirigir. Como eu pude me esquecer daquela festa?

- São eles? – ele me perguntou, apontando para um grupo de pessoas. Nós havíamos parado. Enquanto estava mergulhada em meus pensamentos, ele de alguma forma conseguiu achar um caminho menos lotado naquela multidão para conduzir-nos até ali. Eu olhei para a direção onde ele apontava. Ele repetiu a pergunta:
- São eles?
Foi, então, que eu olhei melhor e vi. Ele havia nos levado até os meus amigos. Eu não entendi.
- Como você sabia...?

Ele não respondeu minha pergunta, nem me deixou terminá-la. Será que eu não estava gritando o suficiente para me fazer ouvida? Ele apenas olhou em meus olhos (ele ainda não havia largado minha mão) e me deu um beijo (curto demais para mim).
- Você já está em boas mãos agora. – ele disse me dando outro beijo, mais curto do que o primeiro (se é que isso era possível) e me largou, voltando para o meio da multidão. Como minha memória pôde ter esquecido aquela voz? Eu não voltei para meus amigos. Minha cabeça ficou no beijo curto demais que ele me deu.

(continua)

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quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Rabiscos

Você viu um desenho jogado no meu pé. Caído pela brisa de ar frio que insiste em entrar e sair de meu quarto. Você tenta entender o que se passa pela minha mente, enquanto durmo pesado meu sono de beleza. Entrar nos abismos profundos de minha alma vem sendo seu desafio nos últimos meses. Porque, quanto mais a gente pensa que conhece alguém, menos a gente tem certeza que conhece. Você não entende. Eu pareço tão normal. Feliz em minha normalidade. De onde vem, então, esse meu lado agressivo que sempre aparece em meus desenhos rabiscados? Que mulher eu trago dentro de mim? Que menina violenta se esconde em minha alma? Eu já lhe esbofetei uma vez. Perdi o controle que nunca verdadeiramente tive. Você deveria ter medo de mim. Mas, pelo contrário, procura cada vez mais sombras em meu raiado dia. Você quer me corrigir. Tornar a menina violenta de dentro na menina feliz de fora. Talvez, você não queira ver que a menina por quem você se apaixonou não existe. Ela é apenas um disfarce da menina violenta que reside dentro de mim. Não a nada a corrigir. Essa é quem eu sou. Não adianta insistir.
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segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Sick bastard

Ela usava roupas largas, óculos fundo de garrafa, cabelos presos. Não havia nada nela que chamasse atenção fora o fato de ela não chamar atenção alguma. Sem roupas de marca ou joias exageradas. Ela se sentia segura daquela forma. Andava despreocupada até mesmo nos becos mais escuros por onde obrigatoriamente tinha que passar.
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Naquele dia, ela estava mais feliz do que normalmente estaria. Havia comprado, a duras prestações, o fone de ouvido perfeito: de alta tecnologia e quase imperceptível de tão pequeno. Não era ligado a fios e nem era parecido com uma nave espacial para orelhas. Nos becos escuros por onde andava, ninguém perceberia sua nova aquisição. Não roubariam algo que nem sequer conseguiam ver.
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Eram mais de onze horas da noite. Um pouco mais tarde que seu horário normal. Ela já estava habituada a andar ali, então não sentia medo, mesmo àquele horário. Já fazia parte de sua rotina. Não tinha como escapar. Não existia outro caminho, senão aquele.
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Ela caminhava lentamente, ouvindo suas músicas favoritas. Pensava em seus planos para aquela noite: nenhum. Chegaria em casa, tomaria um bom banho e cairia na cama. Ela dormiria. Fora um dia cansativo e demasiadamente monótono. A única coisa que salvou suas últimas vinte e quatro horas foi o perfeito fone de ouvido. Apenas sua nova aquisição lhe dava motivos para se sentir feliz.
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Ela andava despreocupada. Não havia ninguém por perto. (Não sabia se era melhor estar sozinha ou acompanhada.) Até que, em um instante, tudo mudou. Ela de repente sentiu um frio na barriga ao notar sua sombra se mesclar à outra. Ela não estava mais sozinha. Alguém se aproximou, perto demais para aquela hora da noite. Ela tentou correr. Seu instinto falando mais alto. Era tarde demais para alguém pedir informações. Ele não queria informações. Ele queria mais.
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Ela não conseguiu ser veloz o suficiente. Ele a agarrou mais rápido. Ela não conseguiu escapar. Seu óculos fundo de garrafa, sem o qual não conseguia ver absolutamente nada, se perdeu com o movimento. Ela gritou, mas não havia ninguém na rua para ajudá-la. Ela estava sozinha com aquele que agora a atacava. Ela gritava, mas nem mesmo ela ouvia coisa alguma. Não ouvia os próprios berros, tampouco os berros alheios. O fone de ouvido mostrando serviço, fazendo juz ao seu valor. A música que ouvia era uma de suas favoritas. Ela odiaria aquela música para sempre.
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Ele foi cruel em sua brutalidade. Rasgou rapidamente as roupas que ela trajava. Ele segurava os braços da menina com força. Ela podia sentir sua pele rasgando. O sangue escorrendo. O chão áspero machucando suas costas. Chão sujo, de certo. Tão sujo quanto aquele homem. Tão sujo quanto aquela cena.
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Ela não conseguia ver nada. Não via nada sem seu óculos. Ela só podia sentir. A dor possuía seu corpo e ela nem podia ver a cara de seu agressor ou ouvir as palavras de certo nojentas que ele dirigia a ela.
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Ela tentava afastá-lo com suas fracas pernas. Não era o bastante. Houve um momento em que ela simplesmente desistiu. A força se esvaiu de tal forma que seu corpo desfaleceu. Foi tudo violento demais para ela.
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Algum tempo depois (tempo demais, tempo de menos, não se sabe ao certo), encontraram seu corpo desmaiado, abandonado no cenário de seu brutal estupro. Ele a violentou e a deixou com vida, mas sem orgulho algum. O trauma foi grande demais.
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Ela sentia nojo de si mesma. Não conseguia mais olhar no espelho. Não queria que ninguém a tocasse. Ela não conseguiu sair de casa por um bom tempo. Ela não permitia que as pessoas sequer se aproximassem dela. A vida de repente perdeu todo sentido para ela que nunca pediu nada da vida além de uma vida comum, sem grandes eventos, sem grandes façanhas.
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Ele devia estar solto por aí. Ela sentia raiva dele. Como alguém pode ser doente o bastante a ponto de obter o que quer à custa do sofrimento alheio?
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Ela não andou mais em becos escuros, nem comprou mais nada a prestações. Ela não ouviu mais música. Ela nunca mais foi a mesma.
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posted by mente inconstante at 14:25 11 comments